“Uhul, está chegando mais uma”, diz a camiseta da Corrida de Reis, de Cuiabá, avisando as centenas de outras guardadas numa gaveta da cômoda, especialmente para as de aventuras de um senhor corredor.
Diz senhor corredor nos dois sentidos: de um grande corredor que, embora amador, se dedica às corridas, como pela idade e cabelos brancos. Categoria sênior, há alguns anos paga ingressos com desconto de 50%.
“Nossa, estava sentindo falta de novas amizades” se manifesta, lá do fundo, a da Meia Maratona de Porto Alegre. “A última tinha sido de Aracaju, mas ela ainda está tímida aqui na gaveta, sem entender nossas conversas e variedades de camiseta, não é mesmo, Caju?” grita em seguida, enchendo a paciência da de Aracaju, a primeira prova disputada em meio à pandemia.
A camiseta da corrida de São Silvestre, que acontece todo ano no dia 31 de dezembro, chega se achando, querendo enturmar. “Oi, gente, vocês acreditam que ele correu 15 quilômetros em tempo menor do que o planejado, nessa corrida única!” diz em tom de grandeza. Do fundo de outra pilha, uma camiseta branca, manga longa, se apresenta em tom de gozação “Hola señor, ¿que tal? Yo soy la de San Silvestre Valencana, la prueba de San Silvestre que se celebra todos los años en Nochevieja, en Madrid. Se escribe Madrid com D! El compitió alli con su hija hace cuatro años … ¿Ella lo acompañó en São Paulo, por supuesto?”. Pronto, São Silvestre 2021 tinha sido colocada no seu lugar, pensaram as demais.
“Ah, São Silvestre, só para você saber, o atleta é multifacetado, ele corre meia maratonas, provas em trilhas, faz triátlon, você vai fazer amizade aqui com várias tribos esportivas”, explica a Urubici, camiseta de prova uphill que acontece em Santa Catarina no inverno. “Como estava a temperatura em São Paulo este ano. Chovendo?” tentando reanimar o recém-chegado.
Silvestre, como lhe denominaram em seguida na gaveta, depois do toco que levou de Valencana, ficou um tanto desanimado para conversar, mas não quis parecer mais grosso e respondeu, “tava fresco, só choveu depois da prova, mas pelo que ouvi falar, ele gostou da temperatura, tanto que baixou o tempo previsto”. Em seguida, se aquietou no seu novo espaço.
Logo depois, como algumas ficaram agitadas na gaveta com a chegada dessa nova companhia, e notando o toco que Valencana havia dado em Silvestre, as camisetas da Equipe Toco (grupo de amigos de Cuiabá da qual o atleta faz parte e que disputam provas no mundo inteiro) se meteram na conversa e começaram a falar.
“Vamos parar com essa má recepção para com o Silvestre”! — Disse uma.
“Ele acabou de chegar de São Paulo, passou pela máquina de lavar, deve estar estranhando nosso clima quente”. — Falou outra. E a mais nova da equipe, ainda perturbando a pobre peça recém chegada: “Só lembrando que muitas das provas ele disputa conosco, e veste vocês depois da chegada, só para não voltar para casa ou hotel todo suado. Nós somos as ‘oficiais”, disse rindo alto.
Corrida de Reis 2020 intervém:
— Oh, Toco, sem querer caçar mais discussão, deixa eu esclarecer uma coisa: você é da equipe, e nós aqui somos da prova. Ele corre há mais de 25 anos nossa prova. Ainda que esteja fora na virada do ano, sempre volta para participar, mesmo sendo somente 10km. É pela nossa tradição.
E continua o pensamento: “Ano passado não teve por conta da pandemia, e por isso nós aqui dentro fortalecemos nossa amizade nesse período, não chegou camiseta nova, mas ele não deixou de treinar e nos vestir, todas, nos treinos diários.”
Algumas camisetas aplaudiram, outras fingiram continuar descansando, as mais embaixo das pilhas tiveram a conversa abafada desde o começo, não prestavam muita atenção, acostumadas que estavam com o salseiro.
Entretanto, muitas adoravam criar caso e movimentar a estadia na gaveta e, para encerrar a disputa, a camiseta da Meia Maratona do Douro, Portugal, retoma o assunto: “Oras pois, estou a rir de vocês nessa querela sem tamanho. Como se não soubessem que a mais importante de todas aqui sou eu. Sou a única prova que ele correu com os filhos. Estávamos a viajar juntos para comemorar o aniversário da rapariga e correr pelos vinhedos de Peso da Régua”.
Douro era modesta, sempre quieta, como a própria região de onde tinha vindo. Não se metia em conversas alheias, mas não podia deixar esta oportunidade passar em branco.
O alvoroço continuava, as camisetas nacionais, das capitais por onde havia participado de alguma prova, aplaudiram a intervenção. Rio de Janeiro dialogava apenas com Curitiba, afirmando que o atleta tinha adorado correr à beira-mar, ver o Corcovado, a mata… Curitiba se defendeu contrapondo que ele preferiu ter corrido em sua cidade natal, que, embora morasse em Cuiabá, ela — Curitiba — era a cidade do coração. Floripa não deixou por menos, comentou que a primeira prova em equipe tinha sido a Volta à Ilha, uma aventura na areia, e era especial para ele também.
Paris falou baixinho para Vegas: “Ulalá, le tiroir devient frénétique!”, ao que essa respondeu: “Larga de ser metida, Paris! Fala em português, porque já deu tempo de você aprender a língua e ninguém gosta quando você parle en français”. E mais secamente completou: “Nem precisa traduzir o que falou. Entendi alguma coisa como estarmos mais agitados, frenéticos. Dá um tempo!” e cortou a conversa.
Corrida de Reis continuava acalmando Silvestre, distraindo sua atenção das conversas sobre o mesmo assunto, e em pouco tempo a gaveta voltou ao seu normal.
No dia seguinte, quando se aprontava para correr, o senhor abre a cômoda e apela para a esposa:
— Moreee, você viu a camiseta de Berlim, aquela verde? Não a vejo aqui.
— Gente, com mais de duzentas camisetas nesse gavetão e você quer uma que não está fácil? Pega qualquer outra…” Responde de longe.
— É que o livro que estou lendo se passa de Berlim, e como foi a prova mais linda que já corri, queria treinar hoje com ela.
Sem querer e dito pelo próprio atleta, todas as demais sentiram inveja da preferida.
Texto escrito em Janeiro de 2022.
Imagem: RUN 4 FFWPU no Pexels